quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Ondas Azuis

Manteve a elegância por ignorância diante de um peremptório diagnóstico de Doença de Parkinson. Doença crônica, progressiva, degenerativa e incurável - disse o médico. Aos 42 anos Lia não havia sequer ouvido falar nessa patologia e não conhecia ninguém com este Mal. Assustada, ao sair do consultório do médico, ficou um bom tempo dentro do carro sem coragem de dar partida, até que se lembrou que tinha muita coisa para fazer e – a vida continua – resolveu voltar para casa.

Afinal tudo que ela sentia era o arrastar da perna direita, uma dor apenas incômoda nas pernas e cansaço logo que começava alguma atividade. E pensar que havia consultado dois ortopedistas em São Paulo. Um afirmou que era reumatismo e outro que era porque seu pé direito estava torto e recomendou palmilhas. Seus primeiros erros médico; outros viriam.

O neurologista havia dito que quando a doença se manifesta a pessoa já perdeu, pelo menos, 70% desses neurônios fabricantes da tal dopamina.

A dopamina é uma substância química (neurotransmissor), uma espécie de óleo que lubrifica os nervos e é responsável pela coordenação normal dos movimentos.

É da ausência (ou da redução em mais de 80% do nível normal) da dopamina que resulta os distúrbios do movimento como tremores, rigidez e lentidão dos movimentos (bradicinesia).

Rindo de si mesma calculou que já estava perdendo neurônios desde quando participava de passeatas e eventos dos movimentos sociais contra a violência à mulher, contra o racismo, contra a intolerância aos gays, quando acompanhava blocos de carnaval, quando também se vestiu de preto-impeachment e fora à Avenida Paulista(SP); mesmo quando dançava em festas porque desde essa época se cansava logo.

Nada, nada de fisioterapia, de massagens, de acumpuntura, hidromassagem. Isso só alivia, disse o médico. Mas não cura.

De repente, em meio ao trânsito, Lia deu o grito que mantinha calado desde que saíra do hospital; na cabeça confusa as palavras do médico – doença crônica, progressiva, degenerativa, incurável se misturava às da receita prescrita: levodopa, carboidopa, selegilina, e se avolumavam, em cascata, numa linguagem totalmente desconhecida para ela.

O nada consta da tomografia que o médico havia solicitado – lhe deu esperanças de que não era nada grave – só fez confirmar o diagnóstico. Não existem exames, nem testes, que comprovem a Doença de Parkinson. ‘O veredicto é baseado na observação’. Os médicos só pedem a tomografia e ou a ressonância magnética a fim de confirmar a não existência de outras patologias.

Entretanto, a micrografia, ou seja, a diminuição do volume da letra e do tamanho da caligrafia é um dos principais sinais denunciadores da doença. Lia ficou surpresa com a diferença de sua própria caligrafia antes e depois de dois dias de doses baixas de levodopa, o que confirmou a suspeita do médico: era realmente Doença de Parkinson – a DP

Doença mais conhecida como Mal de Parkinson foi definida como ‘paralisia agitante’, pelo médico inglês, James Parkinson (1755-1824), membro do colégio real de cirurgiões, como doença caracterizada pela presença de movimentos involuntários tremulantes, diminuição da força muscular, com tendência para a inclinação do tronco para frente e alteração da marcha (festinação), sem, entretanto, afetar os sentidos e o intelecto.

Lia recebeu o diagnóstico de Parkinson em agosto de 1994 – apenas 15 dias após a morte de sua mãe. Um baque desmedido. A perda repentina da mãe, a sensação do definitivo que a morte provoca é uma dor imensurável, atroz. Com o tempo a vida vai trocando o curativo da ferida e a dor se abranda, mas é indelével.

Não é raro pacientes apresentarem sinais e sintomas da doença após um evento fortemente negativo. Este pode ter sido o caso de Lia, a morte da mãe pode ter precipitado o aparecimento desses sinais e sintomas. Ontem, a perda definitiva da mãe. Hoje sua saúde definitivamente comprometida. Uma sensação de perda obstruía seu otimismo e fé na vida.

Lia chegou à casa triste e cabisbaixa, sua faxineira perguntou o que estava acontecendo, ela contou por alto e a faxineira: ora dona Lia, Deus dá o frio conforme o cobertor, ao que ela respondeu: não se trata de frio, mas de um calafrio mesmo e não há cobertor para isso.

O neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) realizou a mais importante de todas as contribuições científicas no estudo da Doença de Parkinson, após a descrição de James Parkinson. Mundialmente conhecido como o “pai da Neurologia”. Charcot acrescentou observações pessoais na definição do quadro clínico, apontando a presença dos chamados quatro sinais cardinais da doença: tremor, lentidão do movimento (bradicinesia), rigidez e dificuldades do equilíbrio, apresentando critérios para o diagnóstico diferencial.

Nesta época Lia morava em Fortaleza e estava dirigindo um bar noturno com galeria de artes plásticas, sebo, palco para teatro, vídeos, performances, shows, além de um cardápio extenso. Muito trabalho.

No dia anterior ao do inesperado diagnóstico Lia e sua parceira haviam combinado com funcionárias e funcionários um mutirão de limpeza e pintura das mesas e cadeiras de madeira e os muros do bar. Lia tomou um banho gelado e foi para o bar. O pessoal, muito simpaticamente, cobrou Lia pelo atraso. Haviam chegado às 9hs e já passava das 11hs. Lia sorria e se desculpava dizendo que esteve resolvendo outras questões também importantes.

Na cozinha do bar encontrou sua parceira e lhe contou o ocorrido. A reação de Denise, sempre estabanada, a assustou mais ainda. Lia perguntou: você conhece esta doença? -Claro que conheço, responde Denise – é aquela que a pessoa treme muito.

-Não brinca. Então é a doença do Mohamed Ali. Sentou-se aturdida; agora sim sabia do que se tratava e entendeu a gravidade com que o médico lhe anunciou o veredicto. ‘Meu mundo tremeu’, disse Lia rindo, mesmo nervosa, brincando com as palavras.

A maioria dos casos de Parkinson não é hereditária. Irmãos, irmãs, filhos e netos não contraem a enfermidade com frequência maior do que qualquer outra pessoa. A DP tende a afetar as pessoas mais idosas, elas são metade do número de parkinsonianos, a outra metade é composta por pessoas das mais variadas idades.

A maior parte começa a apresentar os sintomas na faixa dos 50 anos, alguns na faixa dos 40 e raramente antes disso. Mas, pode ocorrer, e tem ocorrido, com pessoas mais jovens.


Lia “meteu a mão na massa” disposta a trabalhar sem parar para chegar em sua casa bem cansada, tomar um banho e conseguir dormir sem ficar ruminando aquele diagnóstico. Atordoada, ela não parava de penssr: como ela ‘pegou’ isto. Não tem cura? degenerativa? Tremor?

Foi de Charcot a sugestão da mudança do nome da enfermidade de “shaking palsy” – paralisia agitante – para Maladie de Parkinson, (Parkinson’s Desease) em homenagem à descrição clássica de James Parkinson.

“Por quase cinco séculos, a influência francesa sobre o Brasil deu-se em todas as áreas. Praticamente não houve arte, ciência ou conhecimento em que a cultura francesa não esteve presente entre nós” (Voltaire Schilling).

A influência francesa deve ter inspirado a tradução do nome da patologia de Maladie de Parkinson para Mal de Parkinson. Tudo leva a crer, portanto, que tiraram o mal da Maladie francesa.

A tradução para Mal de Parkinson (e não doença de) tende a acentuar o preconceito contra o portador da Doença de Parkinson no Brasil. A palavra Mal, em muitas culturas, é um termo amplamente utilizado para descrever atos, intenções e pensamentos moralmente negativos ou desumanos.

Em algumas religiões o mal é uma força ativa, muitas vezes personificado numa entidade como Satanás ou Diabo, ou seus equivalentes. Por isso, numa sociedade profundamente cristã e maniqueísta como a nossa, o Mal (de Parkinson ou de Alzheimer) adquire conotação mais negativa, que resulta em maior discriminação e preconceito, do que o dirigido a portadores de muitas outras doenças.

Entretanto, atualmente, a tendência de médicos, em seus artigos, monografias e no contato com seus pacientes e, sobretudo, a dos Pks que atuam nas associações de parkinsonianos, é a de empregar mais a expressão Doença de Parkinson ou Parkinson simplesmente. Pena que a imprensa não colabora, ela insiste no mal.

Do Dicionário Aurélio. Só para ilustrar
Doença
Med. Denominação genérica de qualquer desvio do estado normal.
Med. Conjunto de sinais e/ou sintomas que têm uma só causa; moléstias
Fig. Mania, vício, defeito:
Mal
Maligno, maldade, má energia, maléfico, moléstia, estado mórbido, calamidade, epidemia.

Prezado leitor e leitora deste relato. As mudanças repentinas no texto deve-se ao fato de que ele foi inicialmente postado semanalmente e isto permitia ou mesmo pedia essas mudanças

Lia nasceu em Corumbá, cresceu em Três Lagoas MS, morou em Campinas, São Paulo, Paris e Fortaleza. Hoje a filha nada pródiga volta à casa trazida pela Doença.

Mulher inteligente, carismática, viajante inveterada, classe média, média, parece intelectual, mas é apenas bem informada, autodidata, desorganizada, às vezes intolerante, Lia ama literatura, sonha ser escritora, trabalhar com textos, com palavras. Em 1982, deixou o curso de Letras e foi para Paris, a convite de uma amiga, ali onde, para ela, se respira literatura.

Mas antes das palavras vieram as imagens: trabalhou dois anos com fotografia, aprendeu muito revelando e ampliando fotografias da cidade Luz, desenvolvendo o aprendizado da língua, fez cursos de francês e literatura e voltou-se para a tradução. Era uma maneira de estar com as letras. Não podia viver com o que escrevia, mas poderia sobreviver com o que traduzia.

Em fevereiro de 1982, havia conhecido, no restaurante universitário de Paris, Gabriel, um mexicano, mestre em economia pela Sorbonne, mas também apaixonado por línguas e culturas diversas. Amor à primeira vista. Passaram a viver juntos e desde que ela deixou de trabalhar com fotografia passaram a traduzir juntos também.

Cinco anos depois vieram para o Brasil onde, decididos a continuar traduzindo abriram, junto com uma amiga escritora, uma microempresa de traduções, textos diversos e editoração. A empresa continua aberta. Gabriel é hoje intérprete reconhecido e recomendado. E Fernanda é uma escritora de fôlego e talento.

-Ambos, são os pilares do que eu sei hoje, relembra Lia. Só que a doença cortou meu voo ao meio. Entretanto, os distúrbios de nossos movimentos não devem bloquear o movimento de nossos sonhos.

_ Eis-me aqui a escrever, ainda longe do pretendido. Escrevendo sobre Parkinson, a doença, o fantasma e os portadores, mas é um prazeiroso exercício, arremata Lia.


Disposta a entender como viver, conviver e sobreviver com a doença Lia começou a buscar informações em bibliotecas de universidades, em bibliotecas públicas, em livrarias, solicitou o apoio das amigas e amigos para que a ajudassem a encontrar material sobre a doença.

Diante de sua insistência em se inteirar da enfermidade, o neurologista sugeriu a criação de uma associação de parkinsonianos. Ela ficou muito interessada em trabalhar numa questão que envolvia a própria saúde. Era também uma forma de conhecer outras(os) portadoras/portadores de Parkinson 'Pks' e saber como viviam a doença.

Convidou vários pacientes do Dr. Wagner para uma reunião em sua casa, onde seria discutida a proposta de fundação de uma associação de parkinsonianos. Seis casais, Pks e cuidadores compareceram; era dia 26 de junho de 1995, nascia a APC – Associação Parkinson do Ceará.

Uma diretoria foi eleita. Eram os primeiros passos. Eleita presidente e aproveitando-se da relação que tinha com a mídia, TV e jornais, que cobria os eventos do bar, conseguiu uma cobertura notável para a Associação nascente. A segunda reunião foi no self-service da tesoureira.

A partir daí, as reuniões eram feitas num colégio, no último sábado de cada mês, com cada vez mais participantes. O neurologista respondia as dúvidas de Pks, Lia procurava conversar com os pacientes e familiares e acabou conhecendo casos doloridos de portadoras(es) da DP. É preciso lembrar que, até neste momento, os sinais e sintomas de sua doença eram ainda muito tênues, mas o que ela via a deixava preocupada.

Aí começaram os telefonemas de pessoas pedindo informações sobre a doença, pedidos de socorro, cartas e convites para entrevistas e palestras. Mas Lia não podia fazer muito porque ela também buscava informações. Enfim o Dr Jorge trouxe vários exemplares de folhetos e manuais de Associações de Parkinsonianos de vários países. Lia devorou-os e começou a traduzi-los.


Visita especial

Um dia Lia estava em casa, alguém bateu na porta, ela abriu e se deparou com uma moça de aproximadamente 30 anos se torcendo toda, tremendo, completamente sem equilíbrio; parecia, alguém já disse, um daqueles bonecos de plástico de posto de gasolina. Perguntou se estava falando com a presidente da Associação. Lia pediu-lhe que entrasse. Ela veio pedir medicação e Lia lhe explicou que a APC ainda não tinha remédios para distribuir, nem amostras grátis.

–Mas me disseram que você poderia me ajudar. Eu estou há três dias sem meus remédios. Não posso voltar pra casa sem eles. Na farmácia do Hospital das Clínicas não tem e eu não tenho dinheiro para comprá-los.

Lia não sabia o que fazer, tinha um dinheiro da APC em casa, mas hesitava em usá-lo. O bom militante garante que é melhor ensinar a pescar, mas pescar demanda silêncio e equilíbrio e aquela moça sem a levodopa, e sem outras dopas para Parkinson, tremendo daquele jeito cairia no rio ou, certamente, na rua. Ela não estava disponível para regras e se lixava para valores. Ela dispensava o pão, ela precisava de remédios.

Quando Lia vencida lhe prometeu o remédio, ela disse que estava cansada e pediu para se deitar um pouco no sofá. Entregou-lhe a receita e extenuada em minutos adormeceu profundamente. Dormindo, o tremor desaparecia. Estava realmente cansada, física e psicologicamente. Ela morava longe e tinha vindo de ônibus. Posso imaginar o constrangimento durante o percurso. E admirar sua coragem de sair à rua naquele estado. Ela não merecia voltar para casa sem seus remédios.

Enquanto ligava para a farmácia e observava o sono da moça, Lia se perguntava: como serão meus próximos cinco anos? A moça dormindo parecia estar dizendo: eu sou você amanhã. Tremeu de temor.

O drama de Tereza não termina aqui. Ela apresentava um caso raro de parkinsonismo hereditário: sua mãe também era Pk e sofria com a rigidez. Mas falo disso outra hora – já é muita tristeza para o meu andadorzinho.


Situações engraçadas e outras constrangedoras

Na sala de espera de uma clínica
- O que a senhora tem?
– Doença de Parkinson
- Doença de quê?
- Mal de Parkinson – quase sempre uma terceira pessoa se apressa a esclarecer.

Se a pessoa for informada sobre Parkinson, um ahaa carregado de surpresa - vem acompanhado de um julgamento sutil, de um preconceito mal disfarçado. Do tipo: noooossa, tão nova (e já neste estado? parecem dizer).

No Banco
-Mas como a senhora chegou a esse estado? A pergunta foi feita a Lia pela subgerente de um banco, onde Lia tinha conta. A pergunta foi formulada de maneira hostil, como se ela tivesse culpa de seu estado de saúde.
- Estou em momentos de crise de uma doença que é crônica e degenerativa, disse Lia. A subgerente não gostara de ver alguém tão debilitado a sua frente. E deu asas à discriminação.

Já com as pessoas mais simples e desinformadas a palavra Parkinson fica flutuando no ar como balões de aniversário, mesmo porque até elas entenderem e pronunciarem Parkinson, o Mal de já terá feito estragos. Em ambos os casos é uma situação muito chata para qualquer PK.

Ou na padaria
- É aquela doença que faz a pessoa se tremer toda? Mas, você não treme...
- É que eu tenho rigidez
- Valha, eu achava que era só tremor. Então você não fica com vergonha. É que a mulher do meu chefe treme muito, coitada, e fica com muita vergonha quando recebe visitas.

De um pk cearense
- Parei de beber porque me cansei de molhar o terno dos amigos nas festas. Ora, se não posso beber nas festas, não bebo mais de jeito nenhum.

Lia acredita em Deus? Ela assegura que é cristã, mas não praticante.

- Você não é praticante, por que você não crê em Deus. É por isso que você está doente assim. Só Deus pode lhe redimir. Como se a doença fosse “um castigo, uma expiação ou um carma” (tema de um chat de um grupo de PKs)

Não sei, não, emenda Lia – o médico me garantiu que estou assim porque meu cérebro está se recusando a produzir uma espécie de lubrificante responsável pela minha coordenação motora.

Na Associação era preciso, entre outras coisas, fazer o registro em cartório, elaborar o estatuto, atender os novos Pks. Nesse meio tempo, podia-se observar o que uma economia frágil aliada a um descaso com a saúde pública (ano 1995), pode fazer com uma população carente, impossibilitada de adquirir os (caros) medicamentos para doenças neurológicas em geral, e para Parkinson em particular. A APC começou a ser muito requisitada por esta população, mas não podia fazer nada por ela, ou quase nada.

Lia continuava a trabalhar, mas já sem o estímulo necessário para dirigir um espaço tão amplo, que demandava atenção total. Além disso, num sábado de reunião estressante na APC, logo após chegar a casa teve a primeira amostra do que é discinesia e sentiu, aterrorizada, o que o ator norte-americano, também parkinsoniano, Michael Fox tão bem expressou: "Naquele dia, o meu cérebro estava a anunciar que começara a divorciar-se da minha mente."

Só muito depois soube que aqueles constrangedores movimentos involuntários foram provavelmente causados pelo uso inadequado da levodopa.

Ainda falta uma explicação fisiológica válida para discinesia induzida por L-DOPA (DIL). Define-se DIL como uma hipercinesia das extremidades ou tronco em associação com a administração de L-DOPA. Muitas vezes, estes são movimentos coreiformes (torções, giros), mas a DIL também pode manifestar-se como distonia (contrações musculares involuntárias padronizadas e sustentadas).

Lia já não sabia o que era mais importante na sua vida. Ela queria saber mais sobre a doença. Com o início da uma série crescente de discinesia ela já não conseguia trabalhar direito e à medida que perdia o equilíbrio perdia o controle de tudo, até perder o espaço...e o capital investido.

ealmente, os verdes mares do Ceará não estavam pra peixe (nem para pisciana). Com aqueles movimentos incontroláveis Lia se sentia uma personagem de teatro de boneco manipulada por um bonequeiro amador. As reuniões da APC começavam a ser estressantes. Era preciso estar o tempo todo lembrando às cuidadoras/cuidadores que o Parkinson é uma enfermidade neurológica, não necessariamente uma deficiência mental. Pelo menos não era o caso dos associados da Associação Parkinson do Ceará, da presidente inclusive.

Lia se incomodava ao ver como as mulheres – esposas e ou filhas – de parkinsonianos os tratavam; como se fossem imbecis, quase dementes, incapazes (entre coisas) de se servirem dos salgadinhos que a tesoureira insistia em vender para o grupo a cada reunião. [Queiram, por favor, me perdoar por palavras tão pesadas, e pela lembrança dos salgadinhos da tesoureira].

Nós, os Pks, ironizava Lia, não tínhamos tempo nem espaço para falarmos entre nós durante as reuniões. O(a) cuidador(a) sempre respondia as perguntas feitas, até pelo médico, ao (seu !?) Pk.

Durante muito tempo Lia se culpou pela falta de lucidez e inteligência para contornar as intrigas que se tornaram constantes. Ela queria a APC como espaço para troca de experiências (e dores) entre Pks, um espaço para discutirem as dificuldades nas relações familiares, profissional, social e afetiva, para aprender a conviver com o preconceito de que são vítimas.

Entretanto, esses objetivos foram decompostos pela vaidade e irresponsabilidade de algumas cuidadoras. Essas ignoravam ou não se preocupavam com os benefícios de uma vida social ativa do pk, nem percebiam a importância da inclusão social na promoção da autoestima. De uma forma ou de outra, reproduziam o preconceito exibido por não raras famílias que se envergonham de mostrar seu parente portador de Parkinson, condenando-os a viver numa solidão exasperante.

Lia hesitou muito em revelar essa página de sua história, em reconhecer sua incapacidade de liderança, em compreender que o elo com essas pessoas era apenas a doença. E que às vezes o cuidador ou a cuidadora é mais complicado do que o próprio paciente. Mas como se propôs a narrar sua experiência pós Parkinson, essa relação conflituosa com algumas pessoas da APC não pôde ser evitada, não pode ser descartada. Faz parte.

Era um odioso círculo vicioso. Quanto mais problemas na Associação (e altas doses de L-dopa) mais discinesia, quanto mais movimentos involuntários, mais inaceitável era meu posto de presidente.



- Até que, sucumbindo às pressões, sem saber o que fazer de si mesma Lia foi se retirando do convívio social, foi se afastando da associação, não mais bar, não mais mar. Vivia o inferno em forma de discinesia.

Apesar de ser a droga mais eficaz na terapêutica sintomática da Doença de Parkinson, recomenda-se adiar o uso da levodopa nas fases iniciais da doença. Isso porque seu uso a longo prazo correlaciona-se com o desenvolvimento de complicações motoras significativas, como flutuações e discinesias.

A tendência atual é utilizar inicialmente estratégias “poupadoras de levodopa”. Os agonistas dopaminérgicos constituem a base dessa estratégia, além de potencialmente exercerem efeito neuroprotetor. Em pacientes jovens, que estão sujeitos a maior risco de desenvolverem complicações motoras com a levodopa, a primeira escolha é inequivocamente os agonistas dopaminérgicos. A levodopa seria a primeira escolha em pacientes idosos acima de 70 anos ou em pacientes com grande incapacidade motora e prejuízo dos reflexos posturais.


Ao ler os dois parágrafos acima na revista Neurociências, há mais ou menos um ano, Lia compreendeu que a doença é maligna, mas que os medicamentos podem comprometer precocemente a qualidade de vida do indivíduo portador da DP. Se uma pessoa com 42 anos de idade é considerada jovem para o aparecimento do Parkinson, a medicação recomendada a Lia fora completamente inadequada.

Sabe-se que tal fato ocorreu com outros pacientes, mas não se sabe se a esse ponto. Lia perdeu completamente o rumo, o eixo, perdeu um relacionamento afetivo, perdeu a coragem, dinheiro, perdeu amizades. Só faltou perder a vergonha. Os vizinhos a olhavam com pena. As vizinhas preocupadas traziam lanches, bananas, pão, café, ela recebia, mas quase não abria a porta. Dizia que sim, que estava tudo bem, mas continuava com dificuldades para sair, para se alimentar e para dormir.

Uma noite quente, Lia sai do banho e na televisão ligada ela vê na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Atlanta, Muhammad Ali, todo trêmulo, acendendo a pira Olímpica. A cena inesperada causou-lhe uma das mais fortes emoções que já sentiu em sua vida. Com a sensibilidade à flor da pele aquela cena fez cair de vez a ficha. Ajoelhou-se diante da TV e ficou observando aquele homem, símbolo da força, agora fisicamente tão frágil, mas o escolhido para dar vida ao momento mágico dos Jogos Olímpicos. Um gesto de amor pelo esporte e pelo esportista.

Finalmente, sua faxineira, a Toinha, conseguiu convencê-la a ir ao médico. Ela havia perdido peso e chegou a pesar 43 kg. O médico reduziu o Parlodel e a selegilina, mas não alterou a levodopa e prescreveu a amitriptilina. Lia melhorou, porém ainda indisposta a falar ou se sentar nos bancos da praça onde morava e onde a vizinhança estava acostumada a vê-la. Para se distrair assistiu todos os jogos e provas de atletismo que o Brasil participava nas Olimpíadas. Foi uma boa terapia.

Entretanto, a levodopa realmente provoca o desenvolvimento de complicações motoras significativas e, os movimentos involuntários recomeçaram. Num desses dias agitados Lia encontrou o material sobre a doença de Parkinson que havia começado a estudar e disse a si mesma: taí uma coisa que posso, quero e devo fazer sozinha.

Ela continuava a sofrer com a insônia, passava longas noites acordada, mas agora estava mais bem armada para enfrentar seus monstros. Ela digladiava com eles enquanto digitava, escrevia, traduzia, reescrevia o texto. Agora ela oferecia resistência a eles. Lia encontrou na elaboração do Manual um breque na ansiedade, um alento, um silêncio vindo da alma.

A dificuldade maior para a confecção do Manual para Parkinsonianos e seus Familiares era mesmo a falta de referências. Não havia Internet, os textos científicos não eram acessíveis, não existia esse volume de informações sobre a Doença de Parkinson agora disponível pela web.

A dificuldade para reunir o material e o fato de Lia não dominar a linguagem técnica da doença resultou numa edição bem simples. Mesmo assim o Manual foi um sucesso. Mas Lia acha que não dá nem para se envaidecer com isso, não havia outra publicação leiga! Nem melhor, nem pior! Já a segunda edição foi mais sofisticada, ampliada, capa colorida etc, com a participação da Dra. Clara Nakagawa falando sobre os Grupos de Apoio

Antes de renovar os agradecimentos aos participantes e patrocinadores* dos Manuais preciso comentar a recepção dada a Lia e ao ‘boneco’ (rascunho com layout definido) do Manual pelas pessoas que assumiam cada vez mais sua antipatia por ela dentro da APC-Associação Parkinson do Ceará. A coisa tomou uma direção pessoal. A gaúcha Daise era a menos discreta. A questão, como em muitos outros movimentos, era uma questão de poder. Dividiu-se em grupos: um pró Lia e outro contra as posições de Lia.

Mas olhando com realismo, isso é coisa muito comum em incontáveis grupos, associações, cooperativas, partidos etc. Só muda a forma e a importância, o objetivo é o mesmo: o poder, mesmo que, como o de Lia, não fosse grande coisa. rsrs

Enfim, não concordaram com a publicação do Manual e não quiseram nem ler. Lia aquiesceu. Com a saúde em frangalhos e resolvida a voltar a São Paulo para procurar um neurocirurgião recomendado por uma amiga, o melhor a fazer era desfazer-se de responsabilidades e ‘tocar’ sua própria doença. Passou o “poder“(sic) para o vice-presidente com toda a documentação da associação. Mas cutucou: eu vou publicar o Manual.

Em São Paulo, marcou a consulta com o especialista e voltou-se para a edição do Manual. Lia acreditava que, como ela, muita gente buscava essas informações; pôde sentir isso com sua atuação na APC, e a confirmação desta necessidade foi comprovada pelo grande número de participantes no lançamento do Manual na Associação Brasil Parkinson – SP e inúmeros outros que nos procuraram para adquirir o Manual.

Felizmente, hoje são as associações de parkinsonianos, já existentes em diversas Estados do país, que ‘botando seus blogs na rua’, trazem informações fresquinhas e de especial interesse para Pks e seus familiares.

Essas instituições veem estabelecendo uma rede de solidariedade, de transformações na qualidade de vida deste segmento e – muito importante – ajudando-os(as) a sair do armário, a ‘perder a vergonha’ de sair de casa, de deixar ver seu estado, de sair do casulo.

* Nossos agradecimentos ao neurologista Dr. Wagner Horta pelo material trazido do exterior e pela revisão técnica da primeira edição.
* Nossos agradecimentos ao neurologista Dr. Egmont Loboschi pela revisão da segunda edição e pelo adendo: Parkinsonismos
*Agradecimentos à Libbs Farmacêutica pela impressão, à Pro-Texto pela editoração do Manual e a Maryland e Samuel Groissman, presidente da ABP – Associação Brasil Parkinson por terem permitido que o lançamento do primeiro Manual para Parkinsonianos e seus Familiares fosse realizado nessa instituição.
*Agradecimentos também à Ramblas do Brasil pela editoração e impressão da segunda edição (1998). Edição também esgotada.
*Não podemos deixar de agradecer ao designer e amigo Roberto Garcia pela belíssima capa da segunda edição.


A medicação para a Doença de Parkinson


Algumas situações são intrigantes para Lia. O histórico de medicação de muitos pacientes de Parkinson, o dela inclusive, é uma caixa de surpresas. Ela não consegue entender a diferença entre o tremor causado pelo Parkinson em si e o tremor que antecede os movimentos involuntários, esses últimos quase sempre causados pela medicação inadequada e ou pela DIL - Discinesia Induzida pela L-Dopa.

Haja vista que, em geral, quando acionados por este motivo, os médicos desses pacientes costumam reduzir, imediatamente, as dosagens da medicação. Essa situação instável a respeito dos medicamentos deixa Lia apreensiva. Ela fica abalada quando presencia ou quando sabe que alguém esteve ou está em crise de discinesia braba, ou em descontrole emocional.

-Eu sinto um silêncio dentro de mim. Eu sinto dó, solidariedade e medo, diz Lia. Eu acho que isto explica a curiosidade que tenho quando conheço um novo ou uma nova Pk. Quero saber qual é a terapia. Que remédios usam.

Sabemos que os remédios anti-Parkinson são verdadeiras “bolas” e administrados em doses inadequadas produzem perda do sono, perda do apetite e cansativos e constrangedores efeitos colaterais e até psicológicos.

- A gente se torna motivo de chacota, parecemos estar bêbados o tempo todo. Eu me sentia como uma galinha mal esganada repete Lia ironizando a si mesma.

O início do tratamento com doses fortes de levodopa, carboidopa e selegilina foi um exagero que custou muito caro a Lia. E quando na tentativa de reduzir os efeitos da DIL o médico recomendou o Sinemet, o verso virou palavrão. A rejeição foi total e imediata. Foi tão violenta que alterou até o cheiro da transpiração. Lia não suportava o próprio suor. Não durou um mês o tratamento com o Sinemet. Mas Lia conhece muitos Pks que se dão melhor com o uso do Sinemet. E os médicos? O que fazer para receitar a medicação correta?



Casos A, B, C

Lia conheceu Alfredo, um pk com o qual trocava figurinhas sobre os bons e maus momentos da doença. Ele recebeu o diagnóstico aos 49 anos, aos 51 sua receita parecia uma lista de supermercado. Nela tinha parlodel, prolopa, sinemet, niar e mantidan, (prolopa e sinemet juntos, não indica um exagero?) Só de Parlodel ele tomava 6 comprimidos por dia. Quando Lia o conheceu ele apresentava como sinal da doença apenas um médio tremor das mãos, que ele colocava sob as pernas quando sentado, e um leve balanceio ao caminhar. Ele era um homem rico (nesse caso) infelizmente. Podia pagar as extravagantes prescrições que lhe eram ministradas. Um exagero terapêutico e financeiro.

Ele deu azar porque a progressão da sua doença foi rápida e pincelada com fases de dolorosas discinesias provocadas pela medicação. Ele tentou a cirurgia, palidotomia, mas de novo faltou-lhe sorte. A cirurgia não foi bem sucedida embora realizada por um renomado neurocirurgião, (o mesmo que operou Lia; falaremos disso na próxima Onda). Ai, a depressão se encarregou do resto... Ele faleceu aos 55 anos. De Parkinson, disse sua esposa a Lia.
É...? murmurou Lia.

Exagero de um lado e carência de outro. Lia foi procurada pelo marido e filho de Berenice, uma parkinsoniana, que queria falar com ela.

- Mas eu não sou médica.
O filho respondeu: Nós sabemos, ela viu a senhora na TV, e sabe que a senhora publicou um Manual para parkinsonianos. Ela quer muito falar com a senhora. Há dias vem pedindo para virmos buscá-la. Eu e meu pai só queremos saber o que devemos fazer. Nós não podemos trazê-la aqui porque ela não está andando.

- Vocês devem levá-la ao médico.
- Nós já levamos há,aproximadamente, dois meses, ela melhorou mas, de repente, piorou de novo. Lia curiosa cedeu e pelo caminho foi se inteirando do caso. Após crises de discinesias sua médica tirou parte da medicação. O que já era esperado, pensou Lia.

Entretanto, quando chegou à casa, quase uma mansão, num quarto enorme, luxuosamente decorado, numa cama grande viu uma mulher pequenina, menos de 1,60m, deitada em posição fetal, sem mexer nem braços, nem pernas,nem pescoço. Um enrijecimento total. Que choque. De novo? Sou eu amanhã? disse Lia baixinho.
E perguntou ao marido.
-Ela já tomou remédios hoje?
-Já
-A que horas? E qual é o medicamento?
- Às 7h00 da manhã. Um comprimido de Prolopa.
Já eram onze horas.
- De quantas em quantas horas?
Resposta surpreendente: Um comprimido de Prolopa por dia.
- Levem-na ao médico o mais rápido possível. É isso que vocês precisam fazer. Parece-me, pelo estado dela, que a medicação não está adequada.
- Mas foi a médica que receitou só esse remédio, responderam.

De repente, Lia percebeu que a mulher chorava. Aproximou-se e ela pediu para ficar sozinha com Lia. O marido e o filho saíram do quarto. Em prantos ela perguntou a Lia se ela ia voltar a andar. E comentou a difícil relação que estava vivendo com o marido e o filho. Eles achavam que ela não estava tão mal assim. Achavam que ela estava chantageando. É que alguns dias após terem sido retirados alguns medicamentos e reduzida a dosagem da Prolopa realmente ela demonstrou melhora. Mas foi só por alguns dias. Ainda sob o efeito da levodopa. Depois...a falta de dopamina se fez sentir.

Comovida com o sofrimento daquela mulher tão frágil diante dela, Lia disse: eu não sou médica, nem psicóloga, mas acho que você deve visitar sua médica urgentemente e relatar o que está acontecendo com você. Sua medicação está aparentemente incorreta. Resolvido isto procure uma fisioterapia que vai lhe ajudar a voltar a andar e tomar as rédeas de sua casa. A mulher abriu um sorriso. Nunca mais se viram, mas Lia às vezes se pergunta: será que ela voltou a andar?

Diagnósticos
(Email recebido em 21.09.2009)

Wilma
...tb sou portadora de DP. Soube do diagnóstico há +/- 5 anos - completo 50 anos no próximo mês. Foi um grande choque. Levei muito tempo pra digerir e elaborar esse fantasma na minha vida - como vc mesma diz no seu blog.
Sobre os medicamentos que uso: o primeiro médico que consultei me receitou uma pescaria, já que eu não tinha nada a não ser um stress... o segundo médico pediu uma ressonância e um exame de licor e diagnosticou esclerose múltipla; receitou um remédio para epilepsia e um seguro funeral já que o prognóstico era o pior possível e eu devia me preparar... o terceiro, quarto e quinto médicos que consultei diagnosticaram parkinsonismo e parkinson. já usei levodopa, akineton, vitamina E, e atualmente uso coenzima Q10 e Sifrol.

Gostaria, se possível, de saber um pouco da sua experiência e dicas para os portadores de DP.

Um forte abraço
Cleide


Cirurgia:

As principais cirurgias para Doença de Parkinson são: a palidotomia, a talamotomia, a neuroestimulação que vem, aliás, se destacando por sua constante evolução científica e tecnológica.

Finalmente, há uma grande expectativa criada pelo “Novo método de Estimulação na Coluna (que) pode se transformar em uma alternativa mais barata e menos invasiva para tratar a doença de Parkinson, segundo estudo que contou com a participação do brasileiro Miguel Nicolelis, neurocientista da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (RN).

Sentindo-se sem autoridade para falar sobre cirurgia na Doença de Parkinson, Lia prefere comentar sua própria cirurgia. É que para ela o todo foi tão inusitado que ao se lembrar daquele ambiente de ficção científica e do êxito da cirurgia ela prefere contar por que e como ela fez a palidotomia

Como dito acima ela se consultou com um neurocirurgião e perguntou-lhe da possibilidade de se submeter a uma cirurgia. Ele respondeu que ainda não era o caso, porque Lia era ainda muito jovem e aconselhava ajustes na dosagem de sua medicação. Feito o ajuste Lia volta para Fortaleza.

Quatro meses depois ei-la de volta a São Paulo com o mesmo problema: discinesia provocada pela DIL – Discinesia Induzida pela Levodopa. O médico tirou a levodopa, mas não se sabe por que os movimentos involuntários continuavam muito fortes. O organismo de Lia passou a rejeitar qualquer medicação e a rigidez aumentava visivelmente. O médico concluiu: se lhe dou medicamentos você trava, se os tiro você trava. Acho que agora é hora da cirurgia.

Era o que Lia esperava. Mesmo depois de informada dos riscos que uma cirurgia como a palidotomia apresenta, por exemplo, anormalidades da fala, da deglutição e da cognição, ou melhora nenhuma, como ocorre em muitos casos, Lia não vacilou, não se deteve. Estava decidida e para ela a cirurgia significava deixar o palco das marionetes e voltar a vida normal.

Lia se acha uma mulher de sorte. Naquele momento, sem dúvida, o mais importante de toda sua vida, ela pôde contar com a solidariedade, generosidade e o otimismo contagiante da amiga Márcia Meireles que apoiou sua decisão e a acompanhou desde a visita ao médico, passando pela realização de uma série de exames até o pós-operatório.

A bateria de exames incluía a tomografia, raios-X do pulmão, diversos exames de sangue e outros. Um check-up completo.

Lia foi internada no Hospital do Ipiranga, onde permaneceu durante oito dias, para o pré-operatório, fazendo os últimos exames e teve seu momento de Joana D’Arc – sem as luzes de Carl T Dreyer – deixaram-na carequinha. Nenhuma importância à vaidade. Era só esperança.

No dia da cirurgia, Marcinha veio buscá-la no Hospital do Ipiranga às 5hrs e foram para o Hospital das Clínicas onde foi realizada a cirurgia. Lia dizia que confiava – e era melhor confiar mesmo – nas mãos do Dr. Manuel e de sua equipe. Eu sei que vai dar certo, ela repetia.

Ás 6hr da manhã Lia entrou na sala de preparação para a cirurgia. Ali, um dos médicos colocou em sua cabeça o aparelho estereotáxico que, para ela, no fim do século 20, da física quântica, visão holística, laser, refinamento tecnológico, esse aparato parecia mais uma ferramenta da Idade da Pedra. (Você pode comprovar os exemplos de aparelhos estereotáxicos para uso em humanos, no Google)

A melhora das molduras estereotáxicas adaptadas para uso com Tomografia Computadorizada e Ressonância Magnética levaram à era da neurocirurgia guiada por imagens.

Era uma coroa (um arco)com parafusos no lugar dos espinhos. Embora mais moderno, o aparato estereotáxico usado por ela até podia ter moldura melhorada, mas a dor causada pelos odiosos parafusos era tão odiosa quanto. Deusas, suplicava Lia, me poupe dessa dor. - Mas tem que aguentar, daqui a pouco virá a anestesia, disse-lhe o médico que instalou o aparelho em sua cabeça.

Meia hora depois ela foi levada para a sala de cirurgia. Uma equipe médica a esperava e ela levando na brincadeira disse a eles.

- Por favor, tirem isto da minha cabeça. Já entendi o que Cristo passou com aquela coroa de espinhos. Esses parafusos são meus espinhos. Veio a anestesia local e a dor imediatamente passou.

Lia continua: depois de umas agulhadas me senti um pedaço de asfalto, com uma broca sinistra abrindo um buraco na minha cabeça, em movimentos rotativos.

Logo que soube que havia na equipe um médico neurologista colombiano e um cubano, a fim de descontrair, distender sua ansiedade, Lia perguntou para o cubano se ele não queria comprar uma camiseta do Che Guevara com a seguinte frase: Hay que endurecerse pero sin jamás olvidar el condón.

- Todos, ou quase todos, riram e eu consegui afastar a paúra que estava começando a sentir, conta Lia.

- Ora, não era para menos: primeiro, tosam meus cabelos, depois colocam um aparelho estranho que ‘amarrota’ minha cabeça, em seguida abrem um buraco nela com uma broca, minha coragem quase foi para o brejo.

- Finalmente chegamos às vias de fato. Voltamos a era atual. Alta tecnologia, laser, cada um dos 6 médicos tomaram seus lugares. O bruxo mor apareceu e deu início à cirurgia. Dois ou três médicos e estagiários operavam os computadores. Como a cirurgia é realizada com o paciente acordado, me senti fazendo parte de um filme de ficção científica, ainda mais porque a todo o momento era solicitada a confirmar a atividade funcional de cada um dos sentidos.

- Era um tal de levante a mão direita, agora o braço esquerdo, está me ouvindo? Como é seu nome? Você sabe onde está? Num determinado momento o cirurgião me disse: agora vamos apagar as luzes (que já eram poucas) e você deve dizer o que viu. Na primeira vez não vi nada, mas na segunda vez eu achei o máximo e gritei: Ondas Azuis, estou vendo ondas azuis, ondas azuis.

- Sedaram-me imediatamente após essa minha manifestação...

Só fui acordar por volta das 17hrs. A Marcinha estava ao meu lado e eu me levantando rapidamente, surpreendendo-a e surpreendendo a mim mesma, disse a ela que eu queria comer um sanduíche bauru com coca cola.

-Logo depois, saímos do HC numa ambulância em alta velocidade, com sua sirene no máximo e abrindo passagem entre os carros em plena Avenida Paulista, na hora do rush, de volta ao Hospital Ipiranga.

No dia seguinte já tive alta. Eu estava livre da rigidez, livre dos movimentos involuntários e impressionada com o resultado da cirurgia. Passei uma semana muito bem, sem remédios, sem tremor, sem bradicinesia. Feliz da vida.

No retorno para tirar o curativo um dos médicos disse: - Você não sabe o quanto é importante para nós vê-la assim tão bem. Um outro disse: - Você tem sorte.
- Obrigada a toda a equipe, respondi surpresa.

Bem, aí ocorreu um balde de água fria. Eu devia continuar a tomar os medicamentos (se bem que reduzidos a parlodel e mantidan) para adiar a deterioração do lado esquerdo. Fiquei chocada, mas a real é que a DP não tem cura. A cirurgia só reduz o mal.

-Passei oito anos me sentindo muito bem, como se estivesse no início da doença. Só nos últimos três anos o lado esquerdo está a exigir toda minha atenção. Mas não tenho mais coragem de enfrentar uma palidotomia bilateral.

- Espero estar entre aqueles que se beneficiarão do Novo método de Estimulação na Coluna.

-Hoje, os movimentos involuntários são bem poucos e controláveis, mas foram substituídos por inesperados e irritantes tombos. Antes entrava em depressão quando caía, o psicológico balançava, agora falo um monte de palavrões, levanto sacudo a poeira e dou meia-volta lentamente, diz Lia rindo muito.

De novo Mohamed Ali
Embora pareça surreal este diálogo realmente aconteceu,.
Três dias antes da internação no Hospital do Ipiranga, a autora deste relato estava almoçando num pequeno restaurante na Lapa esperando que a Marcinha viesse buscá-la para resolver outras questões sobre a cirurgia quando um garoto, sobrinho do dono do restaurante, de nove ou 10 anos, não mais do que isso se aproximou dela e perguntou:
- Não me leve a mal mas posso saber por que você tem essas dificuldade para andar? Por que você treme?
- Eu tenho uma doença que se chama Doença de Parkinson
- Eu sei o que é, respondeu o garoto. É a mesma doença do Mohamed Ali. Eu faço parte de um fã clube do Ali. Ele se chamava Cassius Clay sabia?
- Sabia, mas o que faz um fã clube do Mohamed Ali?
- Nós estudamos a vida dele. Temos quase tudo que saiu nos jornais, revistas, programas de TV, vídeos. Tudo que podemos juntar sobre ele.
Os olhos do garoto brilhavam de entusiasmo. Eu disse a ele que havia publicado um Manual sobre a Doença de Parkinson
O garoto surpreendentemente respondeu: então eu sei teu nome. É Wilma Monteiro. A mãe do meu amigo comprou um livro para ele. Eu já li um pouco. Você acha mesmo que ele (Mohamed Ali) não tem cura?

Das emoções que senti desde que portadora de Parkinson, esta foi a segunda maior. E, de novo, Mohamed Ali. A primeira vez foi quando, já disse acima, o vi todo trêmulo acender a pira Olímpica diante de milhares de pessoas presentes e milhões de telespectadores.


FIM


Agradecimentos
Meus sinceros agradecimentos a Iete, Eglis Silvia, Nilza e madrinha Dirce pela carinhosa acolhida e pelo empenho em me ajudar a recuperar minha saúde.

Agradeço a Fernanda, Marcinha, Régine, Joaquin e Caíque pelo estímulo à realização deste blog.

Agradeço também aos PKs, de várias Associações de Parkinsonianos que me ajudaram na divulgação do Blog Veredicto Parkinson – Ondas Azuis.

E muito obrigada a quem leu e a quem continuou lendo ao longo desses 5 meses.

Wilma Monteiro


Referências
- Neurônios equilibrados
Suzane Frutuoso
http://www.emtr.com.br/noticia133.htm
- Aprendendo a conviver com o Mal de Parkinson
- Revista Momento - Jan/Fev 1998.http://www.doencadeparkinson.com.br/impotencia.htm
- Revista de Neurologia
- Tratamento neurocirúrgico na Doença de Parkinson
http://www.revneurol.com/sec/resumen.php?i=p&id=2004260&vol=39&num=10#Inicio
- Tratamento inicial da doença de Parkinson.
Antônio L. Teixeira Jr1, Francisco Cardoso2
http://www.hsp.epm.br/dneuro/neurociencias/Neurociencias12-3.pdf#page=28
- Neuroestimulação por eletrodos se apresenta como nova alternativa
Saúde e Lazer de 07.de maio de 2008
http://www.saudelazer.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2443&Itemid=49
- Método de estimulação criado por brasileiro traz esperança a pacientes com Parkinson
- Portal UOL
http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/2009/03/19/ult4477u1441.jhtm
- Manual para Parkinsonianos e seus familiares
Wilma Monteiro - 1998


Email: wilmamonteiro@terra.com.br


quarta-feira, 14 de outubro de 2009

15 - Ondas Azuis

cont...
Cirurgia: As principais cirurgias para Doença de Parkinson são: a palidotomia, a talamotomia, a neuroestimulação que vem, aliás, se destacando por sua constante evolução científica e tecnológica. Finalmente, há uma grande expectativa criada pelo “Novo método de Estimulação na Coluna (que) pode se transformar em uma alternativa mais barata e menos invasiva para tratar a doença de Parkinson, segundo estudo que contou com a participação do brasileiro Miguel Nicolelis, neurocientista da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (RN).

Nesta que é a penúltima Onda, sentindo-se sem autoridade para falar sobre cirurgia na Doença de Parkinson, Lia se sente estimulada a expor sua própria cirurgia. É que para ela o todo foi tão inusitado que ao se lembrar daquele ambiente de ficção científica e do êxito da cirurgia ela prefere contar, com humor, por que e como ela fez a palidotomia

Como dito acima ela se consultou com um neurocirurgião e perguntou-lhe da possibilidade de se submeter a uma cirurgia. Ele respondeu que ainda não era o caso, porque Lia era ainda muito jovem e aconselhava ajustes na dosagem de sua medicação. Feito o ajuste Lia volta para Fortaleza.

Quatro meses depois ei-la de volta a São Paulo com o mesmo problema: discinesia provocada pela DIL – Discinesia Induzida pela Levodopa. O médico tirou a levodopa, mas não se sabe por que os movimentos involuntários continuavam muito fortes. O organismo de Lia passou a rejeitar qualquer medicação e a rigidez aumentava visivelmente. O médico concluiu: se lhe dou medicamentos você trava, se os tiro você trava. Acho que agora é hora da cirurgia.

Era o que Lia esperava. Mesmo depois de informada dos riscos que uma cirurgia como a palidotomia apresenta, por exemplo, anormalidades da fala, da deglutição e da cognição, ou melhora nenhuma, como ocorre em muitos casos, Lia não vacilou, não se deteve. Estava decidida e para ela a cirurgia significava deixar o palco das marionetes e voltar a vida normal.

Lia se acha uma mulher de sorte. Naquele momento, sem dúvida, o mais importante de toda sua vida, ela pôde contar com a solidariedade, generosidade e o otimismo contagiante da amiga Márcia Meireles que apoiou sua decisão e a acompanhou desde a visita ao médico, passando pela realização de uma série de exames até o pós-operatório.

A bateria de exames incluía a tomografia, raio-X do pulmão, diversos exames de sangue e outros. Um check-up completo.

Lia foi internada no Hospital do Ipiranga, onde permaneceu durante oito dias, para o pré-operatório, fazendo os últimos exames e teve seu momento de Joana D’Arc – sem as luzes de Carl T Dreyer – deixaram-na carequinha. Nenhuma importância à vaidade. Era só esperança.

No dia da cirurgia, Marcinha veio buscá-la no Hospital do Ipiranga às 5hrs e foram para o Hospital das Clínicas onde foi realizada a cirurgia. Lia dizia que confiava – e era melhor confiar mesmo – nas mãos do Dr Manuel e de sua equipe. Eu sei que vai dar certo, ela repetia.

Ás 6hr da manhã Lia entrou na sala de preparação para a cirurgia. Ali, um dos médicos colocou em sua cabeça o aparelho estereotáxico que, para ela, no fim do século 20, da física quântica, visão holística, laser, refinamento tecnológico, esse aparato parecia mais uma ferramenta da Idade da Pedra. (Você pode comprovar os exemplos de aparelhos estereotáxicos para uso em humanos, no Google)

A melhora das molduras estereotáxicas adaptadas para uso com Tomografia Computadorizada e Ressonância Magnética levaram à era da neurocirurgia guiada por imagens.

Era uma coroa (um arco)com parafusos no lugar dos espinhos. Embora mais moderno, o aparato estereotáxico usado por ela até podia ter moldura melhorada, mas a dor causada pelos odiosos parafusos era tão odiosa quanto. Deusas, suplicava Lia, me poupe dessa dor. - Mas tem que aguentar, daqui a pouco virá a anestesia, disse-lhe o médico que instalou o aparelho em sua cabeça.

Meia hora depois ela foi levada para a sala de cirurgia. Uma equipe médica a esperava e ela levando na brincadeira disse a eles.

- Por favor, tirem isto da minha cabeça. Já entendi o que Cristo passou com aquela coroa de espinhos. Esses parafusos são meus espinhos. Veio a anestesia local e a dor imediatamente passou.

Lia continua - depois de umas agulhadas me senti um pedaço de asfalto, com uma broca sinistra abrindo um buraco na minha cabeça, em movimentos rotativos.

Logo que soube que havia na equipe um médico neurologista colombiano e um cubano, a fim de descontrair, distender sua ansiedade, Lia perguntou para o cubano se ele não queria comprar uma camiseta do Che Guevara com a seguinte frase: Hay que endurecerse pero sin jamás olvidar el condón.

- Todos, ou quase todos, riram e eu consegui afastar a paúra que estava começando a sentir, conta Lia.

- Ora, não era para menos: primeiro, tosam meus cabelos, depois colocam um aparelho estranho que ‘amarrota’ minha cabeça, em seguida abrem um buraco nela com uma broca, minha coragem quase foi para o brejo.

- Finalmente chegamos às vias de fato. Voltamos a era atual. Alta tecnologia, laser, cada um dos 6 médicos tomaram seus lugares. O bruxo mor apareceu e deu início à cirurgia. Dois ou três médicos e estagiários operavam os computadores. Como a cirurgia é realizada com o paciente acordado, me senti fazendo parte de um filme de ficção científica, ainda mais porque a todo momento era solicitada a confirmar a atividade funcional de cada um dos sentidos.

- Era um tal de levante a mão direita, agora o braço esquerdo, está me ouvindo? Como é seu nome? Você sabe onde está? Num determinado momento o cirurgião me disse: agora vamos apagar as luzes (que já eram poucas) e você deve dizer o que viu. Na primeira vez não vi nada, mas na segunda vez eu achei o máximo e gritei: Ondas Azuis, estou vendo ondas azuis, ondas azuis.

- Sedaram-me imediatamente após essa minha manifestação...

cont...

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

14 - Ondas Azuis

cont...

Algumas situações são intrigantes para Lia. O histórico de medicação de muitos pacientes de Parkinson, o dela inclusive, é uma caixa de surpresas. Ela não consegue entender a diferença entre o tremor causado pelo Parkinson em si e o tremor que antecede os movimentos involuntários, esses últimos quase sempre causados pela medicação inadequada e ou pela DIL - Discinesia Induzida pela L-Dopa.

Haja vista que, em geral, quando acionados por este motivo, os médicos desses pacientes costumam reduzir, imediatamente, as dosagens da medicação. Essa situação instável a respeito dos medicamentos deixa Lia apreensiva. Ela fica abalada quando presencia ou quando sabe que alguém esteve ou está em crise de discinesia braba, ou em descontrole emocional.

-Eu sinto um silêncio dentro de mim. Eu sinto dó, solidariedade e medo, diz Lia. Eu acho que isto explica a curiosidade que tenho quando conheço um novo ou uma nova Pk. Quero saber qual é a terapia. Que remédios usam.

Sabemos que os remédios anti-Parkinson são verdadeiras “bolas” e administrados em doses inadequadas produzem perda do sono, perda do apetite e cansativos e constrangedores efeitos colaterais e até psicológicos.

- A gente se torna motivo de chacota, parecemos estar bêbados o tempo todo. Eu me sentia como uma galinha mal esganada repete Lia ironizando a si mesma.

O início do tratamento com doses fortes de levodopa, carboidopa e selegilina foi um exagero que custou muito caro a Lia. E quando na tentativa de reduzir os efeitos da DIL o médico recomendou o Sinemet, o verso virou palavrão. A rejeição foi total e imediata. Foi tão violenta que alterou até o cheiro da transpiração. Lia não suportava o próprio suor. Não durou um mês o tratamento com o Sinemet. Mas Lia conhece muitos Pks que se dão melhor com o uso do Sinemet. E os médicos? O que fazer para receitar a medicação correta?



Casos A, B, C

Lia conheceu Alfredo, um pk com o qual trocava figurinhas sobre os bons e maus momentos da doença. Ele recebeu o diagnóstico aos 49 anos, aos 51 sua receita parecia uma lista de supermercado. Nela tinha parlodel, prolopa, sinemet, niar e mantidan, (prolopa e sinemet juntos, não indica um exagero?) Só de Parlodel ele tomava 6 comprimidos por dia. Quando Lia o conheceu ele apresentava como sinal da doença apenas um médio tremor das mãos, que ele colocava sob as pernas quando sentado, e um leve balanceio ao caminhar. Ele era um homem rico (nesse caso) infelizmente. Podia pagar as extravagantes prescrições que lhe eram ministradas. Um exagero terapêutico e financeiro.

Ele deu azar porque a progressão da sua doença foi rápida e pincelada com fases de dolorosas discinesias provocadas pela medicação. Ele tentou a cirurgia, palidotomia, mas de novo faltou-lhe sorte. A cirurgia não foi bem sucedida embora realizada por um renomado neurocirurgião, (o mesmo que operou Lia; falaremos disso na próxima Onda). Ai, a depressão se encarregou do resto... Ele faleceu aos 55 anos. De Parkinson, disse sua esposa a Lia.
É...? murmurou Lia.

Exagero de um lado e carência de outro. Lia foi procurada pelo marido e filho de Berenice, uma parkinsoniana, que queria falar com ela.

- Mas eu não sou médica.
O filho respondeu: Nós sabemos, ela viu a senhora na TV, e sabe que a senhora publicou um Manual para parkinsonianos. Ela quer muito falar com a senhora. Há dias vem pedindo para virmos buscá-la. Eu e meu pai só queremos saber o que devemos fazer. Nós não podemos trazê-la aqui porque ela não está andando.

- Vocês devem levá-la ao médico.
- Nós já levamos há,aproximadamente, dois meses, ela melhorou mas, de repente, piorou de novo. Lia curiosa cedeu e pelo caminho foi se inteirando do caso. Após crises de discinesias sua médica tirou parte da medicação. O que já era esperado, pensou Lia.

Entretanto, quando chegou à casa, quase uma mansão, num quarto enorme, luxuosamente decorado, numa cama grande viu uma mulher pequenina, menos de 1,60m, deitada em posição fetal, sem mexer nem braços, nem pernas,nem pescoço. Um enrijecimento total. Que choque. De novo? Sou eu amanhã? disse Lia baixinho.
E perguntou ao marido.
-Ela já tomou remédios hoje?
-Já
-A que horas? E qual é o medicamento?
- Às 7h00 da manhã. Um comprimido de Prolopa.
Já eram onze horas.
- De quantas em quantas horas?
Resposta surpreendente: Um comprimido de Prolopa por dia.
- Levem-na ao médico o mais rápido possível. É isso que vocês precisam fazer. Parece-me, pelo estado dela, que a medicação não está adequada.
- Mas foi a médica que receitou só esse remédio, responderam.

De repente, Lia percebeu que a mulher chorava. Aproximou-se e ela pediu para ficar sozinha com Lia. O marido e o filho saíram do quarto. Em prantos ela perguntou a Lia se ela ia voltar a andar. E comentou a difícil relação que estava vivendo com o marido e o filho. Eles achavam que ela não estava tão mal assim. Achavam que ela estava chantageando. É que alguns dias após terem sido retirados alguns medicamentos e reduzida a dosagem da Prolopa realmente ela demonstrou melhora. Mas foi só por alguns dias. Ainda sob o efeito da levodopa. Depois...a falta de dopamina se fez sentir.

Comovida com o sofrimento daquela mulher tão frágil diante dela, Lia disse: eu não sou médica, nem psicóloga, mas acho que você deve visitar sua médica urgentemente e relatar o que está acontecendo com você. Sua medicação está aparentemente incorreta. Resolvido isto procure uma fisioterapia que vai lhe ajudar a voltar a andar e tomar as rédeas de sua casa. A mulher abriu um sorriso. Nunca mais se viram, mas Lia às vezes se pergunta: será que ela voltou a andar?

Diagnósticos
(Email recebido em 21.09.2009)

Wilma
...tb sou portadora de DP. Soube do diagnóstico há +/- 5 anos - completo 50 anos no próximo mês. Foi um grande choque. Levei muito tempo pra digerir e elaborar esse fantasma na minha vida - como vc mesma diz no seu blog.
Sobre os medicamentos que uso: o primeiro médico que consultei me receitou uma pescaria, ja que eu nao tinha nada a nao ser um stress... o segundo médico pediu uma ressonância e um exame de licor e diagnosticou esclerose múltipla; receitou um remédio para epilepsia e um seguro funeral já que o prognóstico era o pior possível e eu devia me preparar... o terceiro, quarto e quinto médicos que consultei diagnosticaram parkinsonismo e parkinson. já usei levodopa, akineton, vitamina E, e atualmente uso coenzima Q10 e Sifrol.

Gostaria, se possível, de saber um pouco da sua experiência e edicas para os portadores de DP.

Um forte abraço
Cleide


cont...

email wilmamonteiro@terra.com.br

sábado, 12 de setembro de 2009

13 - Ondas Azuis

cont...

A dificuldade maior para a confecção do Manual para Parkinsonianos e seus Familiares era mesmo a falta de referências. Não havia Internet, os textos científicos não eram acessíveis, não existia esse volume de informações sobre a Doença de Parkinson agora disponível pela web.

A dificuldade para reunir o material e o fato de Lia não dominar a linguagem técnica da doença resultou numa edição bem simples. Mesmo assim o Manual foi um sucesso. Mas Lia acha que não dá nem para se envaidecer com isso, não havia outra publicação leiga! Nem melhor, nem pior! Já a segunda edição foi mais sofisticada, ampliada, capa colorida etc, com a participação da Dra. Clara Nakagawa falando sobre os Grupos de Apoio

Antes de renovar os agradecimentos aos patrocinadores dos Manuais preciso comentar a recepção dada a Lia e ao ‘boneco’ (rascunho com layout definido) do Manual pelas pessoas que assumiam cada vez mais sua antipatia por ela dentro da APC-Associação Parkinson do Ceará. A coisa tomou uma direção pessoal. A gaúcha Daise era a menos discreta. A questão, como em muitos outros movimentos, era uma questão de poder. Dividiu-se em grupos: um pró Lia e outro contra as posições de Lia.

Mas olhando com realismo, isso é coisa muito comum em incontáveis grupos, associações, cooperativas, partidos etc. Só muda a forma e a importância, o objetivo é o mesmo: o poder, mesmo que, como o de Lia, não fosse grande coisa. rsrs

Enfim, não concordaram com a publicação do Manual e não quiseram nem ler. Lia aquiesceu. Com a saúde em frangalhos e resolvida a voltar a São Paulo para procurar um médico recomendado por uma amiga, o melhor a fazer era desfazer-se de responsabilidades e ‘tocar’ sua própria doença. Passou o “poder“(sic) para o vice-presidente com toda a documentação da associação. Mas cutucou: Eu vou publicar o Manual.

Em São Paulo, marcou a consulta com o especialista e voltou-se para a edição do Manual. Lia acreditava que, como ela, muita gente buscava essas informações; pôde sentir isso com sua atuação na APC, e a confirmação desta necessidade foi comprovada pelo grande número de participantes no lançamento do Manual na Associação Brasil Parkinson – SP.

Felizmente, hoje são as associações de parkinsonianos, já existentes em diversas partes do país que, ‘botando seus blogs na rua’, trazem informações fresquinhas e de especial interesse para Pks e seus familiares.

Essas instituições veem estabelecendo uma rede de solidariedade, de transformações na qualidade de vida deste segmento e – muito importante – ajudando-os(as) a sair do armário, a ‘perder a vergonha’ de sair de casa, de deixar ver seu estado, de sair do casulo.

* Nossos agradecimentos ao neurologista Dr. Wagner Horta pelo material trazido do exterior e pela revisão técnica da primeira edição.
* Nossos agradecimentos ao neurologista Dr. Egmont Lobosky pela revisão da segunda edição e pelo adendo: Parkinsionismos
*Agradecimentos à Libbs Farmacêutica pela impressão, à Pro-Texto pela editoração do Manual e a Maryland e Samuel Groissman, presidente da ABP – Associação Brasil Parkinson por terem permitido que o lançamento do primeiro Manual para Parkinsonianos e seus Familiares fosse realizado nessa instituição.
*Agradecimentos também à Ramblas do Brasil pela editoração e impressão da segunda edição (1998). Edição também esgotada.
*Não podemos deixar de agradecer ao designer e amigo Roberto Garcia pela belíssima capa da segunda edição.


cont...

e-mail wilmamonteiro@terra.com.br

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

12 - Ondas Azuis

cont..
Até que, sucumbindo às pressões, sem saber o que fazer de si mesma Lia foi se retirando do convívio social, foi se afastando da associação, não mais bar, não mais mar. Vivia o inferno em forma de discinesia.

Apesar de ser a droga mais eficaz na terapêutica sintomática da Doença de Parkinson, recomenda-se adiar o uso da levodopa nas fases iniciais da doença. Isso porque seu uso a longo prazo correlaciona-se com o desenvolvimento de complicações motoras significativas, como flutuações e discinesias.

A tendência atual é utilizar inicialmente estratégias “poupadoras de levodopa”. Os agonistas dopaminérgicos constituem a base dessa estratégia, além de potencialmente exercerem efeito neuroprotetor. Em pacientes jovens, que estão sujeitos a maior risco de desenvolverem complicações motoras com a levodopa, a primeira escolha é inequivocamente os agonistas dopaminérgicos. A levodopa seria a primeira escolha em pacientes idosos acima de 70 anos ou em pacientes com grande incapacidade motora e prejuízo dos reflexos posturais.


Ao ler os dois parágrafos acima na revista Neurociências, a mais ou menos um ano, Lia compreendeu que a doença é maligna, mas que os medicamentos podem comprometer precocemente a qualidade de vida do indivíduo portador da DP. Se uma pessoa com 42 anos de idade é considerada jovem para o aparecimento do Parkinson, a medicação recomendada a Lia fora completamente inadequada.

Sabe-se que tal fato ocorreu com outros pacientes, mas não se sabe se a esse ponto. Lia perdeu completamente o rumo, o eixo, perdeu um relacionamento afetivo, perdeu a coragem, dinheiro, perdeu amizades. Só faltou perder a vergonha. Os vizinhos a olhavam com pena. As vizinhas preocupadas traziam lanches, bananas, pão, café, ela recebia, mas quase não abria a porta. Dizia que sim, que estava tudo bem, mas continuava com dificuldades para sair, para se alimentar e para dormir.

Uma noite quente, Lia sai do banho e na televisão ligada ela vê na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Atlanta, Muhammad Ali, todo trêmulo, acendendo a pira Olímpica. A cena inesperada causou-lhe uma das mais fortes emoções que já sentiu em sua vida. Com a sensibilidade à flor da pele aquela cena fez cair de vez a ficha. A gente tem que vestir a camisa do parkinsionismo, disse Lia, observando aquele homem, símbolo da força, agora fisicamente tão frágil, escolhido para dar vida ao momento mágico dos Jogos Olímpicos. Um gesto de amor pelo esporte e pelo esportista.

Finalmente, sua faxineira, a Toinha, conseguiu convencê-la a ir ao médico. Ela havia perdido peso e chegou a pesar 43 kg. O médico reduziu o Parlodel e a selegilina, mas não alterou a levodopa e prescreveu a amitriptilina. Lia melhorou, e ainda indisposta a falar ou de sentar-se nos bancos da praça onde morava e onde a vizinhança estava acostumada a vê-la, assistiu todos os jogos e provas de atletismo que o Brasil participava nas Olimpíadas. Foi uma boa terapia.

Todavia, a levodopa realmente provoca o desenvolvimento de complicações motoras significativas, e os movimentos involuntários recomeçaram. Num desses dias agitados Lia encontrou o material sobre a doença de Parkinson, que havia começado a estudar e disse a si mesma: taí uma coisa que posso, quero e devo fazer sozinha.

Lia continuava sofrendo com insônia, passava longas noites acordada, mas agora estava melhor armada para enfrentar seus monstros. Ela digladiava com eles enquanto digitava, escrevia, traduzia, reescrevia o texto. Agora ela oferecia resistência a eles. Lia encontrou na elaboração do Manual um breque na ansiedade, um alento, um silêncio vindo da alma.
cont...

sábado, 15 de agosto de 2009

11 - Ondas Azuis

cont...

Realmente, os verdes mares do Ceará não estavam pra peixe (nem para pisciana). Com aqueles movimentos incontroláveis Lia se sentia uma personagem de teatro de boneco manipulada por um bonequeiro amador. As reuniões da APC começavam a ser estressantes. Era preciso estar o tempo todo lembrando às cuidadoras/cuidadores que o Parkinson é uma enfermidade neurológica, não necessariamente uma deficiência mental. Pelo menos não era o caso dos associados da Associação Parkinson do Ceará.

Lia se incomodava ao ver como as mulheres – esposas e ou filhas – de parkinsonianos os tratavam; como se fossem imbecis, quase dementes, incapazes (entre coisas) de se servirem dos salgadinhos que a tesoureira insistia em vender para o grupo a cada reunião. [Queiram, por favor, me perdoar por palavras tão pesadas, e pela lembrança dos salgadinhos da tesoureira].

Nós, os Pks, ironizava Lia, não tínhamos tempo nem espaço para falarmos entre nós durante as reuniões. O(a) cuidador(a) sempre respondia as perguntas feitas, até pelo médico, ao (seu !?) Pk.

Durante muito tempo Lia se culpou pela falta de lucidez e inteligência para contornar as intrigas que se tornaram constantes. Ela queria a APC como espaço para troca de experiências (e dores) entre Pks, um espaço para discutirem as dificuldades nas relações familiares, profissional, social e afetiva, para aprender a conviver com o preconceito de que são vítimas.

Entretanto, esses objetivos foram decompostos pela vaidade e irresponsabilidade de algumas cuidadoras. Essas ignoravam ou não se preocupavam com os benefícios de uma vida social ativa do pk, nem percebiam a importância da inclusão social na promoção da autoestima. De uma forma ou de outra, reproduziam o preconceito exibido por não raras famílias que se envergonham de mostrar seu parente portador de Parkinson, condenando-os a viver numa solidão exasperante.

Lia hesitou muito em revelar essa página de sua história, mas como se propôs a narrar sua experiência pós Parkinson, essa relação conflituosa com algumas pessoas da APC não pôde ser evitada, não pode ser descartada. Faz parte.

Entretanto, isto é um blog, lembra Lia: posso deletá-lo assim que meu coração se livrar da indignação. O que não deve demorar muito mais porque este desabafo literário tem me ajudado a superar a profunda insegurança que me move (ou moveu) por mais de 10 anos. Era um odioso círculo vicioso. Quanto mais problemas na Associação (e altas doses de L-dopa) mais discinesia, quanto mais movimentos involuntários, mais inaceitável era meu posto de presidente. Até que....continua na Onda 12, OK?

wilmamonteiro@terra.com.br

cont.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

10 - Ondas Azuis




Cont....

Na Associação era preciso, entre outras coisas, fazer o registro em cartório, elaborar o estatuto, atender os novos Pks. Nesse meio tempo, pôde-se observar o que uma frágil economia, aliada ao descaso de uma política de saúde pública (ano 1995), pode fazer com uma população carente, impossibilitada de adquirir os (caros) medicamentos para doenças neurológicas em geral, e para Parkinson em particular. A APC começou a ser muito requisitada por esta população, mas não podia fazer nada por ela, ou quase nada.

[Erro de edição: o parágrafo seguinte não havia sido devidamente inserido na Onda 3].

Lia, nesta época, estava dirigindo um bar noturno com espaço para exposição de artes plásticas, sebo, palco para teatro, shows, além de um cardápio extenso. Muito trabalho.


Lia continuava a trabalhar, mas já sem o estímulo necessário para dirigir um espaço tão amplo, que demandava atenção total. Além disso, num sábado de reunião estressante na APC, logo após chegar a casa teve a primeira amostra do que é discinesia e sentiu, aterrorizada, o que o ator norte-americano, também parkinsoniano, Michael Fox tão bem expressou: "Naquele dia, o meu cérebro estava a anunciar que começara a divorciar-se da minha mente."

Só muito depois soube que aqueles constrangedores movimentos involuntários foram provavelmente causados pela uso inadequado da levodopa.

Ainda falta uma explicação fisiológica válida para discinesia induzida por L-DOPA (DIL). Define-se DIL como uma hipercinesia das extremidades ou tronco em associação com a administração de L-DOPA. Muitas vezes, estes são movimentos coreiformes (torções, giros), mas a DIL também pode manifestar-se como distonia (contrações musculares involuntárias padronizadas e sustentadas).

Lia já não sabia o que era mais importante na sua vida. Ela queria saber mais sobre a doença. Com o início da uma série de exagerada discinesia ela já não conseguia trabalhar direito e à medida que perdia o equilíbrio perdia o controle de tudo, até perder o espaço...e o capital investido.

cont...


wilmamonteiro@terra.com.br

terça-feira, 21 de julho de 2009

9 - Ondas Azuis

Situações engraçadas e outras constrangedoras


Na sala de espera de uma clínica
- O que a senhora tem?
– Doença de Parkinson
- Doença de quê?
- Mal de Parkinson – quase sempre uma terceira pessoa se apressa a esclarecer.

Se a pessoa for informada sobre Parkinson, um ahaa carregado de surpresa - vem acompanhado de um julgamento sutil, de um preconceito mal disfarçado. Do tipo: noooossa, tão nova (e já neste estado? parecem dizer).



No Banco
-Mas como a senhora chegou a esse estado? A pergunta foi feita a Lia pela subgerente de um banco, onde Lia tinha conta. A pergunta foi formulada de maneira hostil, como se ela tivesse culpa de seu estado de saúde.
- Estou em momentos de crise de uma doença que é crônica e degenerativa, disse Lia. A subgerente não gostara de ver alguém tão debilitado a sua frente. E deu asas à discriminação.

Já com as pessoas mais simples e desinformadas a palavra Parkinson fica flutuando no ar como os winks do MSN, mesmo porque até elas entenderem e pronunciarem a palavra Parkinson, a palavra mal já terá feito estragos. Em ambos os casos é uma situação muito chata para qualquer PK.

Ou na padaria
- É aquela doença que faz a pessoa se tremer toda? Mas, você não treme...
- É que eu tenho rigidez
- Valha, eu achava que era só tremor. Então você não fica com vergonha. É que a mulher do meu chefe treme muito, coitada, e fica com muita vergonha quando recebe visitas.

De um pk cearense
- Parei de beber porque me cansei de molhar o terno dos amigos nas festas. Ora, se não posso beber nas festas, não bebo mais de jeito nenhum.

Lia acredita em Deus? Ela assegura que é cristã, mas não praticante.

- Você não é praticante, por que você não crê em Deus. É por isso que você está doente assim. Só Deus pode lhe redimir. Como se a doença fosse “um castigo, uma expiação ou um carma” (tema de um chat de um grupo de PKs)

Não sei, não, emenda Lia – o médico me garantiu que estou assim porque meu cérebro está se recusando a produzir uma espécie de lubrificante responsável pela minha coordenação motora.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

8 - Ondas Azuis

cont...



Um dia Lia estava em casa, alguém bateu na porta, ela abriu e se deparou com uma moça de aproximadamente 30 anos se torcendo toda, tremendo, completamente sem equilíbrio; parecia, alguém já disse, um daqueles bonecos de plástico de posto de gasolina. Perguntou se estava falando com a presidente da Associação. Lia pediu-lhe que entrasse. Ela veio pedir medicação e Lia lhe explicou que a APC ainda não tinha remédios para distribuir, nem amostras grátis.

–Mas me disseram que você poderia me ajudar. Eu estou há três dias sem meus remédios. Não posso voltar pra casa sem eles. Na farmácia do Hospital das Clínicas não tem e eu não tenho dinheiro para comprá-los.

Lia não sabia o que fazer, tinha um dinheiro da APC em casa, mas hesitava em usá-lo. O bom militante garante que é melhor ensinar a pescar, mas pescar demanda silêncio e equilíbrio e aquela moça sem a levodopa, e sem outras dopas para Parkinson, tremendo daquele jeito cairia no rio ou, certamente, na rua. Ela não estava disponível para regras e se lixava para valores. Ela dispensava o pão, ela precisava de remédios.

Quando Lia vencida lhe prometeu o remédio, ela disse que estava cansada e pediu para se deitar um pouco no sofá. Entregou-lhe a receita e extenuada em minutos adormeceu profundamente. Dormindo, o tremor desaparecia. Estava realmente cansada, física e psicologicamente. Ela morava longe e tinha vindo de ônibus. Posso imaginar o constrangimento durante o percurso. E admirar sua coragem de sair à rua naquele estado. Ela não merecia voltar para casa sem seus remédios.

Enquanto ligava para a farmácia e observava o sono da moça, Lia se perguntava: como serão meus próximos cinco anos? A moça dormindo parecia estar dizendo: eu sou você amanhã. Tremeu de temor.

O drama de Tereza não termina aqui. Ela apresentava um caso raro de parkinsionismo hereditário: sua mãe também era Pk e sofria com a rigidez. Mas falo disso outra hora – já é muita tristeza para o meu andadorzinho.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

7 - Ondas Azuis

cont...


Disposta a entender como viver, conviver e sobreviver com a doença Lia começou a buscar informações em bibliotecas de universidades, em bibliotecas públicas, solicitou o apoio das amigas e amigos para que a ajudassem a encontrar material sobre a Doença de Parkinson.

Diante de sua insistência em se inteirar da enfermidade, o neurologista sugeriu a criação de uma associação de parkinsonianos. Ela ficou muito interessada em trabalhar numa questão que envolvia a própria saúde. Era também uma forma de conhecer outras(os) portadores de Parkinson 'Pks' e saber como viviam a doença.

Convidou vários pacientes do Dr. Jorge para uma reunião em sua casa, onde seria discutida a proposta de fundação de uma associação de parkinsonianos. Seis casais, Pks e cuidadores compareceram; era dia 26 de junho de 1995, nascia a APC – Associação Parkinson do Ceará.

(Esclarecimento: Lia recebeu o diagnóstico em agosto de 1994, e não em 95 como declarei, tinha na época 42 anos e não 43, portanto há 15 anos convive com esse fantasma inglês)

Uma diretoria foi eleita. Eram os primeiros passos. Eleita presidente e aproveitando-se da relação que tinha com a mídia, TV e jornais, que cobria os eventos do bar, conseguiu uma cobertura notável para a APC. E a segunda reunião foi no self-service da tesoureira.

A partir daí, as reuniões eram feitas num colégio, no último sábado de cada mês,com cada vez mais participantes. O neurologista respondia as dúvidas de Pks, Lia procurava conversar com os pacientes e familiares e acabou conhecendo casos doloridos de portadoras(es) da DP. É preciso lembrar que, até neste momento, os sinais e sintomas de sua doença eram ainda muito tênues, mas o que ela via a deixava preocupada.

Aí começaram os telefonemas de todo o Estado, pedindo ajuda e informação, cartas e convites para entrevistas e palestras. O Dr.Jorge trouxe vários exemplares de folhetos e manuais de Associações de Parkinsonianos de alguns países. Lia devorou-os e começou a traduzi-los.

cont...


sexta-feira, 19 de junho de 2009

6 - Ondas Azuis

Cont...


Lia nasceu em Corumbá, cresceu em Três Lagoas MS, morou em Campinas, São Paulo, Paris e Fortaleza. Hoje a filha nada pródiga volta a casa trazida pela Doença.

Lia é uma mulher inteligente, carismática, viajante inveterada, classe média, média, parece intelectual, mas é apenas bem informada, autodidata, desorganizada, às vezes intolerante, mas ama literatura, sempre sonhou em ser uma escritora, trabalhar com textos, com palavras. Em 1982, deixou o curso de Letras e foi para Paris, a convite de uma amiga, ali onde, para ela, se respira literatura.

Mas antes das palavras vieram as imagens: trabalhou dois anos com fotografia, não pôde recusar o salário, fez cursos de francês e literatura e voltou-se para a tradução. Era uma maneira de estar com as letras. Não podia viver com o que escrevia, mas poderia sobreviver com o que traduzia.

Em fevereiro de 1982, havia conhecido, no restaurante universitário de Paris, Gabriel, um mexicano, mestre em economia pela Sorbonne, mas também apaixonado por línguas e culturas diversas. Amor à primeira vista. Passaram a viver juntos e desde que ela deixou de trabalhar com fotografia, passaram a traduzir juntos também.

Cinco anos depois vieram para o Brasil onde, decididos a continuar traduzindo abriram, junto com uma amiga escritora, uma microempresa de traduções, textos diversos e editoração. A empresa continua aberta. Gabriel é hoje intérprete reconhecido e recomendado. E Fernanda é uma escritora com fôlego e talento.

-Ambos, são os pilares do que eu sei hoje, relembra Lia. Só que a doença cortou meu voo ao meio. Entretanto, os distúrbios de nossos movimentos não devem bloquear o movimento de nossos sonhos.
_ Eis-me aqui a escrever. Sobre Parkinson, mas com muito prazer, arremata.



wilmamonteiro@terra.com.br


Cont...
Revisou: Caíque Rodrigues

sexta-feira, 12 de junho de 2009

5- Ondas Azuis

cont...

Foi de Charcot a sugestão da mudança do nome da enfermidade de “shaking palsy” – paralisia agitante – para Maladie de Parkinson, (Parkinson’s Desease) em homenagem à descrição clássica de James Parkinson.

Pesquisa de Lia:
Como “os brasileiros herdaram dos portugueses o seu amor às coisas francesas... Por quase cinco séculos, a influência francesa sobre o Brasil deu-se em todas as áreas. Praticamente não houve arte, ciência ou conhecimento em que a cultura francesa não esteve presente entre nós” (Voltaire Schilling).

A influência francesa sobre Portugal e Brasil deve ter inspirado a tradução do nome da patologia para Mal de Parkinson.Tudo leva a crer, portanto, que tiraram o mal da Maladie francesa.

A tradução de maladie de Parkinson para Mal de Parkinson (e não doença de) tende a acentuar o preconceito contra o portador da DP, no Brasil. A palavra Mal, em muitas culturas, é um termo amplamente utilizado para descrever atos, intenções e pensamentos moralmente negativos ou desumanos.

Em algumas religiões o mal é uma força ativa, muitas vezes personificado numa entidade como Satanás ou Diabo, ou seus equivalentes. Por isso, numa sociedade profundamente cristã e maniqueísta como a nossa, o Mal (de Parkinson ou de Alzheimer) adquire conotação mais negativa, que resulta em maior discriminação e preconceito, do que o dirigido a portadores de muitas outras doenças.

Entretanto, atualmente, a tendência de médicos, em seus artigos, monografias e no contato com seus pacientes – e dos Pks, sobretudo, os que participam de associações, é a de empregar mais a expressão Doença de Parkinson. Ou Parkinson simplesmente. Pena que a imprensa não colabora, ela insiste no mal.


Do Dicionário Aurélio. Só para ilustrar
Doença
Med. Denominação genérica de qualquer desvio do estado normal.
Med. Conjunto de sinais e/ou sintomas que têm uma só causa; moléstias
Fig. Mania, vício, defeito:

Mal
Maligno, maldade, má energia, maléfico, moléstia, estado mórbido, calamidade, epidemia.
cont...
Revisou: Caíque Rodrigues

sexta-feira, 5 de junho de 2009

4 - Ondas azuis

cont...

No dia anterior ao do inesperado diagnóstico, Lia e sua parceira haviam combinado com funcionárias e funcionários para um mutirão de limpeza e pintura das mesas e cadeiras de madeira e os muros do bar. A galera cobrou pelo atraso, havia chegado às 9hs e ela só chegou depois das 11hs. Lia sorria e se desculpava dizendo que estava trabalhando.

Ao entrar na cozinha do bar encontrou sua parceira e lhe contou o que havia acontecido. A reação de Denise, sempre estabanada, a assustou mais ainda. Lia perguntou: você conhece esta doença? -Claro que conheço, responde Denise – é aquela que a pessoa treme muito.

-Não brinca. Então é a doença do Mohamed Ali. Sentou-se aturdida; agora sim sabia do que se tratava e entendeu a gravidade com que o médico lhe anunciou o veredicto. ‘Meu mundo tremeu’, disse Lia rindo, mesmo nervosa, brincando com as palavras. Um hábito dela.

A maioria dos casos de Parkinson não é hereditária. Irmãos, irmãs, filhos e netos não contraem a enfermidade com frequência maior do que qualquer outra pessoa. A DP tende a afetar as pessoas mais idosas, elas são metade do número de parkinsonianos, a outra metade é composta por pessoas das mais variadas idades.

A maior parte começa a apresentar os sintomas na faixa dos 50 anos, alguns na faixa dos 40 e raramente antes disso. Mas, pode ocorrer, e tem ocorrido, com pessoas mais jovens.



Lia se perguntou: Haverá um amplo crescimento no número de portadores de Parkinson; ou cresceu a visibilidade?. Ambos, provavelmente, ela mesmo responde.
cont....

Revisou: Caíque Rodrigues

quinta-feira, 28 de maio de 2009

3 - Ondas Azuis

Cont...

Lia recebeu o diagnóstico de Doença de Parkinson em agosto de 1995 – apenas 15 dias após a morte de sua mãe. Um baque desmedido. A perda repentina da mãe, a sensação do definitivo que a morte provoca é uma dor imensurável, atroz. Com o tempo a vida vai trocando o curativo da ferida e a dor se abranda, mas é indelével.

Não é raro pacientes apresentarem sinais e sintomas da doença após um evento fortemente negativo. Este pode ter sido o caso de Lia, a morte da mãe pode ter precipitado o aparecimento desses sinais e sintomas. Ontem, a perda definitiva da mãe. Hoje sua saúde definitivamente comprometida. Uma sensação de perda obstruía seu otimismo e fé na vida.

Lia chegou à casa triste e cabisbaixa, sua faxineira perguntou o que estava acontecendo, ela contou por alto e a faxineira: ora dona Lia, Deus dá o frio conforme o cobertor, ao que ela respondeu: não se trata de frio, mas de calafrio mesmo e haja cobertor.

O neurologista francês Jean-Martin Charcot (1825-1893) realizou a mais importante de todas as contribuições científicas no estudo da Doença de Parkinson, após a descrição de James Parkinson. Mundialmente conhecido como o “pai da Neurologia”. Charcot acrescentou observações pessoais na definição do quadro clínico, apontando a presença dos chamados quatro sinais cardinais da doença: tremor, lentidão do movimento (bradicinesia), rigidez e dificuldades do equilíbrio, apresentando critérios para o diagnóstico diferencial.

Lia, nesta época, estava dirigindo um bar noturno com espaço para exposição de artes plásticas, sebo, palco para teatro, performances, shows, além de um cardápio extenso. Muito trabalho.
Revisou: Caíque Rodrigues

sexta-feira, 22 de maio de 2009

2. Ondas Azuis

Cont...

Nada, nada de fisioterapia, de massagens, de acumpuntura, hidromassagem. Isso só alivia, disse o médico. Mas não cura.
A notar: não faz muito tempo que os médicos, em geral, recomendam fisioterapia para seus pacientes.

De repente, em meio ao trânsito, Lia deu o grito que mantinha calado desde que saíra do hospital; na cabeça confusa as palavras do médico – doença crônica, progressiva, degenerativa, incurável se misturava às da receita prescrita: levodopa, carboidopa, seligilina, e se avolumavam, em cascata, numa linguagem totalmente desconhecida para ela.

O nada consta da tomografia que o médico havia solicitado – lhe deu esperanças de que não era nada grave – só fez confirmar o diagnóstico. Não existem exames, nem testes, que comprovem a Doença de Parkinson. ‘O veredicto é baseado na observação’. Os médicos só pedem a tomografia a fim de confirmar a não existência de outras patologias.

Entretanto, a micrografia, ou seja, a diminuição do volume da letra e do tamanho da caligrafia é um dos principais e irredutíveis sintomas da doença. Lia ficou surpresa com a diferença de sua própria caligrafia antes e depois de dois dias de doses baixas de levodopa, o que confirmou a suspeita do médico: era realmente Doença de Parkinson – DP

Doença mais conhecida como Mal de Parkinson foi definida como ‘paralisia agitante’, pelo médico inglês, James Parkinson (1755-1824), membro do colégio real de cirurgiões, como doença caracterizada pela presença de movimentos involuntários tremulantes, diminuição da força muscular, com tendência para a inclinação do tronco para frente e alteração da marcha (festinação), sem, entretanto, afetar os sentidos e o intelecto.Cont...
Revisou: Caíque Rodrigues

terça-feira, 12 de maio de 2009

1. Ondas azuis

Manteve a elegância por ignorância diante de um peremptório diagnóstico de Doença de Parkinson. Doença crônica, progressiva, degenerativa e incurável, -disse o médico. Aos 42 anos nunca tinha sequer ouvido falar nessa patologia e não conhecia ninguém com este Mal. Assustada, ao sair do consultório do médico, ficou um bom tempo dentro do carro sem coragem de dar partida, até que se lembrou que tinha muita coisa para fazer e – a vida continua – resolveu voltar para casa.

Afinal tudo que ela sentia era o arrastar da perna direita, uma dor incômoda nas pernas e cansaço logo que começava alguma atividade. E pensar que havia consultado dois ortopedistas em São Paulo. Um afirmou que era reumatismo e outro que era porque seu pé direito estava torto e recomendou palmilhas. Seus primeiros erros médico; outros viriam.

O neurologista havia dito que quando a doença se manifesta a pessoa já perdeu, pelo menos, 70% desses neurônios fabricantes da tal dopamina.

Rindo de si mesma calculou que já estava perdendo neurônios desde quando participava de passeatas e eventos dos movimentos sociais contra a violência à mulher, contra o racismo, contra a intolerância aos gays, quando acompanhava blocos de carnaval, quando também se vestiu de preto-impeachment e foira a Avenida Paulista(SP), quando dançava em festas, porque desde essa época se cansava logo.