sexta-feira, 28 de agosto de 2009

12 - Ondas Azuis

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Até que, sucumbindo às pressões, sem saber o que fazer de si mesma Lia foi se retirando do convívio social, foi se afastando da associação, não mais bar, não mais mar. Vivia o inferno em forma de discinesia.

Apesar de ser a droga mais eficaz na terapêutica sintomática da Doença de Parkinson, recomenda-se adiar o uso da levodopa nas fases iniciais da doença. Isso porque seu uso a longo prazo correlaciona-se com o desenvolvimento de complicações motoras significativas, como flutuações e discinesias.

A tendência atual é utilizar inicialmente estratégias “poupadoras de levodopa”. Os agonistas dopaminérgicos constituem a base dessa estratégia, além de potencialmente exercerem efeito neuroprotetor. Em pacientes jovens, que estão sujeitos a maior risco de desenvolverem complicações motoras com a levodopa, a primeira escolha é inequivocamente os agonistas dopaminérgicos. A levodopa seria a primeira escolha em pacientes idosos acima de 70 anos ou em pacientes com grande incapacidade motora e prejuízo dos reflexos posturais.


Ao ler os dois parágrafos acima na revista Neurociências, a mais ou menos um ano, Lia compreendeu que a doença é maligna, mas que os medicamentos podem comprometer precocemente a qualidade de vida do indivíduo portador da DP. Se uma pessoa com 42 anos de idade é considerada jovem para o aparecimento do Parkinson, a medicação recomendada a Lia fora completamente inadequada.

Sabe-se que tal fato ocorreu com outros pacientes, mas não se sabe se a esse ponto. Lia perdeu completamente o rumo, o eixo, perdeu um relacionamento afetivo, perdeu a coragem, dinheiro, perdeu amizades. Só faltou perder a vergonha. Os vizinhos a olhavam com pena. As vizinhas preocupadas traziam lanches, bananas, pão, café, ela recebia, mas quase não abria a porta. Dizia que sim, que estava tudo bem, mas continuava com dificuldades para sair, para se alimentar e para dormir.

Uma noite quente, Lia sai do banho e na televisão ligada ela vê na cerimônia de abertura das Olimpíadas de Atlanta, Muhammad Ali, todo trêmulo, acendendo a pira Olímpica. A cena inesperada causou-lhe uma das mais fortes emoções que já sentiu em sua vida. Com a sensibilidade à flor da pele aquela cena fez cair de vez a ficha. A gente tem que vestir a camisa do parkinsionismo, disse Lia, observando aquele homem, símbolo da força, agora fisicamente tão frágil, escolhido para dar vida ao momento mágico dos Jogos Olímpicos. Um gesto de amor pelo esporte e pelo esportista.

Finalmente, sua faxineira, a Toinha, conseguiu convencê-la a ir ao médico. Ela havia perdido peso e chegou a pesar 43 kg. O médico reduziu o Parlodel e a selegilina, mas não alterou a levodopa e prescreveu a amitriptilina. Lia melhorou, e ainda indisposta a falar ou de sentar-se nos bancos da praça onde morava e onde a vizinhança estava acostumada a vê-la, assistiu todos os jogos e provas de atletismo que o Brasil participava nas Olimpíadas. Foi uma boa terapia.

Todavia, a levodopa realmente provoca o desenvolvimento de complicações motoras significativas, e os movimentos involuntários recomeçaram. Num desses dias agitados Lia encontrou o material sobre a doença de Parkinson, que havia começado a estudar e disse a si mesma: taí uma coisa que posso, quero e devo fazer sozinha.

Lia continuava sofrendo com insônia, passava longas noites acordada, mas agora estava melhor armada para enfrentar seus monstros. Ela digladiava com eles enquanto digitava, escrevia, traduzia, reescrevia o texto. Agora ela oferecia resistência a eles. Lia encontrou na elaboração do Manual um breque na ansiedade, um alento, um silêncio vindo da alma.
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sábado, 15 de agosto de 2009

11 - Ondas Azuis

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Realmente, os verdes mares do Ceará não estavam pra peixe (nem para pisciana). Com aqueles movimentos incontroláveis Lia se sentia uma personagem de teatro de boneco manipulada por um bonequeiro amador. As reuniões da APC começavam a ser estressantes. Era preciso estar o tempo todo lembrando às cuidadoras/cuidadores que o Parkinson é uma enfermidade neurológica, não necessariamente uma deficiência mental. Pelo menos não era o caso dos associados da Associação Parkinson do Ceará.

Lia se incomodava ao ver como as mulheres – esposas e ou filhas – de parkinsonianos os tratavam; como se fossem imbecis, quase dementes, incapazes (entre coisas) de se servirem dos salgadinhos que a tesoureira insistia em vender para o grupo a cada reunião. [Queiram, por favor, me perdoar por palavras tão pesadas, e pela lembrança dos salgadinhos da tesoureira].

Nós, os Pks, ironizava Lia, não tínhamos tempo nem espaço para falarmos entre nós durante as reuniões. O(a) cuidador(a) sempre respondia as perguntas feitas, até pelo médico, ao (seu !?) Pk.

Durante muito tempo Lia se culpou pela falta de lucidez e inteligência para contornar as intrigas que se tornaram constantes. Ela queria a APC como espaço para troca de experiências (e dores) entre Pks, um espaço para discutirem as dificuldades nas relações familiares, profissional, social e afetiva, para aprender a conviver com o preconceito de que são vítimas.

Entretanto, esses objetivos foram decompostos pela vaidade e irresponsabilidade de algumas cuidadoras. Essas ignoravam ou não se preocupavam com os benefícios de uma vida social ativa do pk, nem percebiam a importância da inclusão social na promoção da autoestima. De uma forma ou de outra, reproduziam o preconceito exibido por não raras famílias que se envergonham de mostrar seu parente portador de Parkinson, condenando-os a viver numa solidão exasperante.

Lia hesitou muito em revelar essa página de sua história, mas como se propôs a narrar sua experiência pós Parkinson, essa relação conflituosa com algumas pessoas da APC não pôde ser evitada, não pode ser descartada. Faz parte.

Entretanto, isto é um blog, lembra Lia: posso deletá-lo assim que meu coração se livrar da indignação. O que não deve demorar muito mais porque este desabafo literário tem me ajudado a superar a profunda insegurança que me move (ou moveu) por mais de 10 anos. Era um odioso círculo vicioso. Quanto mais problemas na Associação (e altas doses de L-dopa) mais discinesia, quanto mais movimentos involuntários, mais inaceitável era meu posto de presidente. Até que....continua na Onda 12, OK?

wilmamonteiro@terra.com.br

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sexta-feira, 7 de agosto de 2009

10 - Ondas Azuis




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Na Associação era preciso, entre outras coisas, fazer o registro em cartório, elaborar o estatuto, atender os novos Pks. Nesse meio tempo, pôde-se observar o que uma frágil economia, aliada ao descaso de uma política de saúde pública (ano 1995), pode fazer com uma população carente, impossibilitada de adquirir os (caros) medicamentos para doenças neurológicas em geral, e para Parkinson em particular. A APC começou a ser muito requisitada por esta população, mas não podia fazer nada por ela, ou quase nada.

[Erro de edição: o parágrafo seguinte não havia sido devidamente inserido na Onda 3].

Lia, nesta época, estava dirigindo um bar noturno com espaço para exposição de artes plásticas, sebo, palco para teatro, shows, além de um cardápio extenso. Muito trabalho.


Lia continuava a trabalhar, mas já sem o estímulo necessário para dirigir um espaço tão amplo, que demandava atenção total. Além disso, num sábado de reunião estressante na APC, logo após chegar a casa teve a primeira amostra do que é discinesia e sentiu, aterrorizada, o que o ator norte-americano, também parkinsoniano, Michael Fox tão bem expressou: "Naquele dia, o meu cérebro estava a anunciar que começara a divorciar-se da minha mente."

Só muito depois soube que aqueles constrangedores movimentos involuntários foram provavelmente causados pela uso inadequado da levodopa.

Ainda falta uma explicação fisiológica válida para discinesia induzida por L-DOPA (DIL). Define-se DIL como uma hipercinesia das extremidades ou tronco em associação com a administração de L-DOPA. Muitas vezes, estes são movimentos coreiformes (torções, giros), mas a DIL também pode manifestar-se como distonia (contrações musculares involuntárias padronizadas e sustentadas).

Lia já não sabia o que era mais importante na sua vida. Ela queria saber mais sobre a doença. Com o início da uma série de exagerada discinesia ela já não conseguia trabalhar direito e à medida que perdia o equilíbrio perdia o controle de tudo, até perder o espaço...e o capital investido.

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wilmamonteiro@terra.com.br